O Discipulado e a Cruz

 

O pastor Bonhoeffer foi martirizado aos 39 anos-
Então começou ele a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos... (Mc 8.31-38).

O chamado ao discipulado está, aqui, no contexto do anúncio da Paixão de Jesus. Jesus está para sofrer e ser rejeitado. É esse o imperativo da promessa de Deus, para que se cumpram as Escrituras. Paixão e rejeição não são a mesma coisa. Jesus podia ser o Cristo festejado ainda na Paixão. Em sua Paixão poderiam concentrar-se toda a piedade e ad¬miração do mundo. A Paixão como acontecimento trágico poderia ainda ter valor próprio, honra e dignidade própria. Jesus, porém, é o Cristo rejeitado na Paixão. A rejeição tira da Paixão toda a dignidade e honra. Ela deve ser sofrimento sem honra. Paixão e rejeição, eis em resumo a definição da cruz de Jesus. Ser crucificado é sinônimo de sofrer e morrer rejeitado e repudiado por força da necessidade divina. Qualquer tentati¬va de impedir o que é necessário é satânica, mesmo que esta tentativa provenha do círculo dos discípulos (o que é uma agravante), pois assim não se quer permitir que Cristo seja Cristo. O fato de ser justamente Pedro, a Rocha da Igreja, a tornar-se culpado, logo após sua confissão de Jesus como o Cristo e de sua instalação, revela que, logo de início, a Igreja se escandalizou com o Cristo sofredor. Ela não quer semelhante Senhor e, como Igreja de Cristo, não quer permitir que ele lhe imponha a lei do sofrimento. O protesto de Pedro exprime sua relutância em se dispor a sofrer. Deste modo é que Satanás entrou na Igreja, pretendendo arrancá-la à cruz de seu Senhor.
Jesus, portanto, viu-se na contingência de esclarecer de modo in¬sofismável que o imperativo do sofrimento era extensivo aos discípulos. Assim como o Cristo somente é Cristo quando sofredor e rejeitado, tam¬bém o discípulo somente é discípulo quando sofredor e rejeitado, cruci¬ficado com Cristo. O discipulado como união com a pessoa de Jesus Cristo coloca o discípulo sob a lei de Cristo, ou seja, sob a cruz.
Porém, ao comunicar esta verdade inalienável a seus discípulos, Jesus começa por lhes dar plena liberdade, o que é digno de nota. "Se alguém quiser vir após mim...", diz Jesus. Não é algo óbvio, nem mes¬mo entre os discípulos. Ninguém pode ser forçado a isso, nem mesmo se pode esperar que alguém o faça; antes: "se alguém quiser" segui-lo, a despeito de quaisquer outras ofertas que lhe sejam feitas. Uma vez mais, tudo depende da decisão individual; em pleno discipulado, toda a carrei¬ra é, uma vez mais, interrompida, tudo fica em aberto, nada se espera, nada se impõe. Tão incisivo é o que agora se vai dizer que, uma vez mais, antes de se anunciar a lei do discipulado, os próprios discípulos têm que sentir-se em liberdade.
"Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue." Assim como Pedro disse com relação a Cristo: "Não conheço esse homem", deverá o discípulo dizer em relação a si mesmo. A autonegação jamais pode con¬sistir de uma série, por longa que seja, de atos avulsos de auto-martirização ou de exercícios ascéticos; autonegação não é suicídio, porque ain¬da aí a vontade do ser humano pode impor-se. A autonegação consiste em conhecer apenas a Cristo, e não mais a si próprio; em ver somente aquele que segue em frente sem olharmos o caminho que julgamos tão difícil. A autonegação diz apenas isso: ele vai na frente; apega-te a ele.
"... tome a sua cruz". Jesus, em sua graça, preparou os discípulos para o impacto destas palavras através do ensino da autonegação. Só após termos esquecido real e totalmente a nós próprios, somente após não nos conhecermos mais a nós mesmos, é que poderemos estar pron¬tos para levar a cruz por amor a ele. Se conhecermos tão-somente a ele, não conheceremos mais as dores de nossa cruz, pois só a Jesus é que veremos. Se ele não nos tivesse bondosamente preparado para ouvirmos estas palavras, não as poderíamos suportar. Todavia, assim ele nos deu condições de aceitar também esta dura palavra como gra¬ça. Tal palavra nos encontra na alegria do discipulado e nele nos con¬firma.
A cruz não é desventura nem pesado destino; é o sofrimento que resulta da união exclusiva com Cristo. A cruz não é sofrimento casual, mas sofrimento necessário. A cruz não é sofrimento relacionado com a existência natural, mas com o fato de pertencermos a Cristo. A cruz não é, essencialmente, apenas sofrimento, mas sim sofrimento e rejeição -rejeição no sentido rigoroso, rejeição por amor de Jesus Cristo, e não em conseqüência de qualquer outra atitude ou confissão. Um cristianismo que não vinha mais tomando o discipulado a sério, que transformara o Evangelho no consolo da graça barata e para o qual a existência natural e a existência cristã estavam inseparavelmente misturadas, tal cristianis¬mo tinha que considerar a cruz uma desventura diária, uma tribulação e angústia de nossa vida natural. Esqueceu-se que cruz significa sempre também rejeição, que o opróbrio do sofrimento é inerente à cruz. Ser rejeitado no sofrimento, desprezado e abandonado pelos seres humanos, como se lamenta tanto o Salmista, eis a característica essencial do sofri¬mento da cruz que já não é compreensível a uma cristandade incapaz de distinguir entre existência civil e existência cristã. A cruz é a compaixão com Cristo, sofrer com Cristo. Somente a união com Cristo, tal como esta se verifica no discipulado, está, de fato, sob a cruz.
"... tome a sua cruz." Ela já está preparada desde o início; falta apenas levá-la. Porém, para que ninguém pense que tem que sair à pro¬cura de uma cruz qualquer, seja onde for, ou que deve procurar volunta¬riamente o sofrimento, Jesus diz que existe uma cruz já preparada para cada um de nós, uma cruz a nós destinada e atribuída por Deus. Cada qual tem que suportar a medida de sofrimento e rejeição que lhe é reser¬vada. Essa medida varia de pessoa para pessoa, pois a um Deus honra com maior sofrimento, dando-lhe, inclusive, a graça do martírio; a ou¬tro, porém, não permite que seja tentado além de suas forças. No entan¬to, a cruz é uma só.
A cruz é imposta a cada crente. O primeiro sofrimento com Cristo, ao qual ninguém escapa, é o chamado que nos chama para fora das vinculações com o mundo. E a morte do velho ser humano no encontro com Jesus Cristo. Quem entra no discipulado entrega-se à morte de Jesus, expõe sua vida à morte. Isso é assim desde o princípio; a cruz não é o cruz da qual me tornei participante. Assim o chamado de Jesus para levarmos nossa cruz coloca cada discípulo na comunhão do perdão dos pecados. O perdão dos pecados é o sofrimento de Cristo ordenado ao discípulo, imposto a todos os cristãos.
Como, porém, saberá o discípulo qual é sua cruz? Ele a receberá ao entrar no discipulado do Senhor sofredor; na comunhão de Jesus, reconhecerá sua cruz.
O sofrimento é, pois, a característica dos seguidores de Cristo. O discípulo não está acima de seu mestre. O discipulado é passio passiva, é sofrimento obrigatório. Por isso, Lutero incluiu o sofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja. Um anteprojeto da Confessio Augustana definiu a Igreja como comunidade dos que são "perseguidos e martirizados por causa do Evangelho". Quem não quiser tomar sobre si a cruz, quem não quiser expor sua vida ao sofrimento e à rejeição por parte dos seres humanos, perde a comunhão com Cristo e não é seu discípulo. Quem, porém, perder sua vida no discipulado, no carregar da cruz, tor¬nará a encontrá-la no próprio discipulado, na comunhão da cruz com Cristo. O oposto do discipulado é envergonhar-se de Cristo, envergo¬nhar-se da cruz, escandalizar-se por causa da cruz.
O discipulado é união com o Cristo sofredor. Por isso, nada há de estranho no sofrimento do cristão; antes, é graça, é alegria. Os relatos sobre os primeiros mártires da Igreja testemunham que Cristo transfigu¬ra para os seus o momento extremo do suplício com a certeza indescrití¬vel de sua proximidade e comunhão. Assim, nos tormentos mais atrozes sofridos por amor a Cristo, os mártires experimentaram a máxima ale¬gria e bem-aventurança da comunhão com seu Senhor. Suportar a cruz se lhes revelou como a única maneira de triunfar sobre o sofrimento. Isto, porém, aplica-se a todos quantos seguem a Cristo, porque foi igual¬mente válido para ele.
Adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizen¬do: Meu Pai, se possível, passe de mim esse cálice! Todavia, não como eu quero, e, sim, como tu queres... Tornando a retirar-se, orou de novo, dizendo: Meu Pai, se não é possível passar de mim esse cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. (Mt 26.39 e 42).
Jesus pede ao Pai que faça passar aquele cálice; e o Pai ouviu a prece do Filho. O cálice do sofrimento passaria - porém, unicamente ao ser bebido. Jesus sabe isso perfeitamente ao se ajoelhar pela segunda vez no Getsêmani; sabe que o sofrimento passará ao ser suportado. So¬mente suportando-o é que ele o vencerá e derrotará. A cruz é sua vitória.
Sofrimento é afastamento de Deus. Por isso é que quem se encon¬tra na comunhão de Deus não pode sofrer. Jesus confirmou esta lição do Antigo Testamento. Justamente por essa razão é que ele toma sobre si o sofrimento de todo o mundo, vencendo-o assim. Ele sofre toda a separa¬ção de Deus. O cálice passa se for esvaziado. Jesus quer vencer o sofri¬mento do mundo; por isso, tem que prová-lo até ao extremo. O sofri¬mento continua a ser afastamento de Deus; porém, na comunhão do so¬frimento de Jesus Cristo, o sofrimento é vencido pelo sofrimento, e jus¬tamente no sofrimento se experimenta a comunhão com Deus.
O sofrimento precisa ser suportado para que passe. Ou o mundo tem que suportá-lo e sucumbir sob seu peso, ou ele recai sobre Cristo e é vencido por ele. Dessa maneira é que Cristo sofre em lugar do mundo. Exclusivamente o sofrimento de Cristo é sofrimento expiatório. Mas também a Igreja sabe agora que o sofrimento do mundo está à procura de alguém que o tome sobre si. No discipulado de Cristo, tal sofrimento recai sobre a Igreja, e esta o suporta sabendo-se, por sua vez, suportada por Cristo. Ao seguir a Cristo, sob a cruz, a Igreja de Jesus Cristo repre¬senta o mundo perante Deus.
Deus é um Deus carregador. O Filho de Deus tomou sobre si nossa carne e, por isso, suportou a cruz, suportou todos os nossos pecados e, por seu carregar, trouxe a reconciliação. Da mesma forma, o discípulo está chamado a levar fardos. Ser cristão consiste em levar fardos. Como Cristo manteve a comunhão do Pai levando fardos, assim também carre¬gar fardos é, para o discípulo, comunhão com Cristo. O ser humano pode livrar-se do fardo que lhe é imposto. Mas, assim procedendo, ele não se liberta propriamente do fardo; antes, passa a levar um fardo ainda mais pesado, mais insuportável. Leva, por livre escolha, o jugo de si mesmo. Jesus convidou a todos os oprimidos por toda sorte de sofri¬mentos e fardos para os lançarem fora e tomarem sobre si seu jugo, que é suave, e seu fardo, que é leve. Seu jugo e fardo são a cruz. Colocar-se sob essa cruz não significa miséria e desespero, mas é refrigério e des¬canso para as almas, é a suprema alegria. Aí, então, não andamos mais sob o peso de leis e fardos de feitura própria, mas sob o jugo daquele que nos conhece e caminha a nosso lado sob o mesmo jugo, onde temos a certeza e a proximidade de sua comunhão, É a Cristo que o seguidor encontra ao tomar sobre si sua cruz.
certeza e a proximidade de sua comunhão, É a Cristo que o seguidor encontra ao tomar sobre si sua cruz.
 

Isso deve ir não de acordo com teu entendimento, mas acima dele; mer¬gulha na insensatez e dar-te-ei meu entendimento; não saber para onde vais é saber exatamente para onde vais. Meu entendimento torna-te in¬sensato. Assim saiu Abraão de sua pátria sem saber para onde ir. Con¬fiou em minha sabedoria e desistiu de sua própria, e encontrou o cami¬nho certo e o destino certo. Eis o caminho da cruz: tu não o podes achar; eu tenho que guiar-te como a um cego; por isso nem tu, nenhum ser humano, nenhuma criatura, mas eu, eu em pessoa te ensinarei, através de meu Espírito e Palavra, o caminho que deves trilhar. Não a obra que tu escolhes, não o sofrimento que tu imaginas, mas sim o caminho que te é preparado contra tua escolha, contra teu pensamento e desejo - a esse segue, a esse te chamo, nele sê discípulo; é tempo oportuno, teu Mestre chegou. (Lutero)