Barata ou Preciosa?

O pastor Dietrich Bonhoeffer foi martirizado aos 39 anos pelos Nazistas.


A graça barata é a inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa.
Graça barata é graça como refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graça como inesgotável tesouro da Igreja, distribuído diariamente com mãos levianas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo. A essência da graça seria justamente que a conta foi liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o preço pago, são também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipação. Que seria a graça se não fosse barata?
Graça barata significa a graça como doutrina, como princípio, como sistema; significa perdão dos pecados como verdade geral, significa o amor de Deus como conceito cristão de Deus. Quem o aceita já tem o perdão de seus pecados. A Igreja participa da graça já pelo simples fato de ter essa doutrina da graça. Nesta Igreja, o mundo encontra fácil cobertura para seus pecados dos quais não tem remorsos e não deseja verdadeiramente libertar-se. A graça barata é, por isso, uma negação da Palavra viva de Deus, negação da encarnação do Verbo de Deus.
Graça barata significa justificação do pecado, e não do pecador. Como a graça faz tudo sozinha, tudo também pode permanecer como antes. "Afinal, a minha força nada faz." O mundo continua sendo mundo, e nós continuamos sendo pecadores "mesmo na vida mais piedosa". Viva, pois, o crente como vive o mundo, coloque-se, em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e não se atreva - sob pena de ser acusado de heresia entusiasta! - a ter, sob a graça, uma vida diferente da que tinha sob o pecado! Que se guarde de encolerizar-se contra a graça, de envergonhar essa graça grande e barata, e de instituir um novo culto do literalismo tentando ter uma vida de obediência de acordo com os mandamentos de Jesus Cristo!
O mundo é justificado pela graça, e, por isso - por amor da seriedade dessa graça, para que não haja resistência a essa graça insubstituível! - que o cristão viva como o resto do mundo! E certo que ele gostaria de realizar algo de extraordinário, e constitui, sem dúvida, um grande sacrifício não poder fazê-lo, mas ter que viver mundanamente. Contudo, ele precisa fazer esse sacrifício, praticar a autonegação, renunciar a uma vida que se distinga da do mundo. Tem que deixar a graça ser realmente graça, para não destruir ao mundo a fé nessa graça barata. Todavia, que o crente, em seu mundanismo, nessa renúncia necessária que tem de fazer por amor do mundo - não, por amor da graça! - continue consolado e seguro (securus) na posse dessa graça, que tudo opera sozinha! Por isso, que o crente não seja discípulo, antes se console com a graça! Isto é graça barata como justificação do pecado, mas não justificação do pecador penitente, que abandona o pecado e se arrepende; não é o perdão que separa do pecado. A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios.
A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina comunitária, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga suas redes e o segue.
A graça preciosa é o Evangelho que se deve procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater.
Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao ser humano, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por ter sido preciosa para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho - "vocês foram comprados por preço" - e porque não pode ser barato para nós aquilo que custou caro para Deus. A graça é preciosa sobretudo porque Deus não achou que seu Filho fosse preço demasiado caro para pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.
A graça preciosa é a graça como santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo, não lançado aos cães; e por isso é graça como palavra viva, a Palavra de Deus que ele próprio pronuncia de acordo com seu beneplácito. Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: "O meu jugo é suave e o meu fardo é leve" são expressão da graça.
Por duas vezes Pedro ouviu o chamado: "Segue-me!" Foi esta a primeira e a última palavra de Jesus a seu discípulo (Mc 1.17; Jo 21.22). Toda sua vida se situa entre esses dois chamados. Da primeira vez, Pedro, no Lago de Genesaré, ao ouvir o chamado de Jesus, largara as redes e abandonara a profissão, seguindo a Jesus em obediência cega. Da última vez, é o Ressurreto que o encontra em seu antigo ofício, novamente no Lago de Genesaré; e mais uma vez o chamado é: "Segue-me!" No espaço entre esses dois chamados, havia toda uma vida de discipulado de Cristo. No meio dela encontra-se a confissão de que Jesus é o Cristo de Deus. Por três vezes a mesma mensagem foi anunciada a Pedro, no início, no fim e em Cesaréia de Filipe, ou seja, a mensagem de que Cristo é seu Senhor e Deus. A graça de Cristo que chama: "Segue-me!" é a mesma que se revela a Pedro em sua confissão do Filho de Deus.
Houve, pois, uma intervenção tripla da graça no caminho de Pedro, a mesma graça proclamada em três ocasiões diferentes; ela era, assim, de fato a graça do próprio Cristo e não a graça que Pedro atribuía a si mesmo. Foi essa mesma graça de Cristo que venceu esse discípulo, levando-o a largar tudo por amor do discipulado; foi ela que o impeliu a uma confissão blasfema aos ouvidos do mundo; foi ela que chamou o infiel Pedro à comunhão derradeira, a do martírio, pelo que lhe foram perdoados todos os pecados. A graça e o discipulado permanecem indissoluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graça preciosa.
Com a expansão do cristianismo e a secularização crescente da Igreja, a consciência dessa graça preciosa perdeu-se gradualmente. O mundo estava cristianizado, a graça passara a ser propriedade comum de um mundo cristão. Tinha-se tornado barata. No entanto, a Igreja Romana conservava um último resto desta consciência. Foi de significado decisivo o fato de o monasticismo não se ter separado da Igreja, e de esta ter sido suficientemente sábia para o tolerar. Ali, na periferia da Igreja, estava o lugar no qual se mantinha viva a consciência da preciosidade da graça, e de que esta encerra em si o discipulado. Por amor de Cristo, homens e mulheres abandonavam tudo quanto possuíam, procurando cumprir os severos mandamentos de Jesus na prática diária. Foi assim que a vida monástica se transformou num protesto vivo contra a secularização do cristianismo, contra o barateamento da graça. Todavia, pelo próprio fato de ter tolerado esse protesto e de ter evitado uma cisão defi¬nitiva, a Igreja o relativizou, encontrando nele até a justificação de sua própria vida mundana; pois agora a vida monástica transformava-se numa realização especial de caráter individual, realização essa que não poderia ser exigida à massa do povo cristão.
A limitação fatal do mandamento de Jesus a um grupo limitado de indivíduos de qualidades excepcionais levou à distinção entre uma realização máxima e uma realização mínima na esfera da obediência cristã. Assim, a cada ataque renovado contra a secularização da Igreja, podia-se apontar para a possibilidade da vida monástica dentro da mesma Igreja, ao lado da qual se justificava plenamente a outra possibilidade do caminho mais fácil. Desse modo, apelar para o conceito que a Igreja primitiva tinha da preciosidade da graça - conceito que ficara preservado no monasticismo da Igreja Romana - teve que servir, paradoxalmente, uma vez mais como justificação final da secularização da Igreja. Em tudo isso, o erro decisivo do monasticismo não residia no fato de - a despeito de tantos mal-entendidos quanto ao conteúdo da vontade de Jesus - ter seguido o gracioso caminho do discipulado rigroso. Antes, o monasticismo distanciou-se essencialmente do cristianismo por se deixar transformar ele próprio na realização excepcional, voluntária, de uns poucos, reivindicando, assim, mérito especial para si.
Quando, por intermédio do seu servo Martim Lutero, na Reforma, Deus avivou uma vez mais o Evangelho da graça pura e preciosa, fez com que Lutero passasse primeiro pelo convento. Lutero era monge. Tudo abandonara e desejava seguir a Cristo em obediência perfeita. Renunciou ao mundo e dedicou-se à obra cristã. Aprendeu a obediência a Cristo e à sua Igreja, pois sabia que somente o obediente é que pode crer. O chamado para o convento custou a Lutero a total consagração de sua vida. Com o caminho escolhido, Lutero fracassou em relação ao próprio Deus. Este lhe mostrou, através das Escrituras, que o discipulado de Jesus não era a realização meritória de alguns, mas um mandamento divino a todos os cristãos. A humilde obra do discipulado convertera-se, no monasticismo, numa realização meritória dos santos. A autonegação do seguidor revelou-se nele como a derradeira auto-afirmação espiritual dos piedosos. Foi assim que o mundo se infiltrou no seio da vida monástica, mostrando-se de novo perigosamente ativo. A fuga do mundo revelara-se como a mais refinada forma de amor ao mundo.
Nesse fracasso da última possibilidade de uma vida piedosa, Lutero foi alcançado pela graça. Viu no colapso do mundo monástico a mão salvadora de Deus estendida em Cristo. A ela se agarrou, certo de que "nossos esforços nada podem nem mesmo na vida mais piedosa". Foi a graça preciosa que lhe foi dada, e ela lhe despedaçou toda a sua existência. Teve que largar uma vez mais as suas redes e seguir o Mestre. Da primeira vez, quando fora para o convento, abandonara tudo - menos a si mesmo, seu eu piedoso. Desta vez, até isso lhe foi tirado. Não seguiu o Mestre por mérito próprio, mas baseado na graça de Deus. Não lhe foi dito: "E certo que pecaste, mas tudo já está perdoado; permanece onde estás e consola-te no perdão." Lutero teve que abandonar o convento e regressar ao mundo, não porque este, em si, fosse bom e santo, mas sim porque também o convento nada mais era do que mundo.
O caminho de Lutero para fora do convento e de volta ao mundo constitui o ataque mais incisivo que o mundo sofreu desde os tempos da primeira Igreja. A renúncia do monge ao mundo é brincadeira comparada à renúncia que o mundo experimentou por parte daquele que a ele regressara. O ataque agora era frontal; o discipulado de Jesus passaria a ser vivido no seio do mundo. Aquilo que, em circunstâncias especiais e com as facilidades da vida monástica, era praticado como realização especial passava agora a ser algo necessário, ordenado a cada cristão no mundo. A obediência perfeita ao mandamento de Cristo deveria acontecer na vida profissional de todos os dias. Assim se aprofundou de forma imprevisível o conflito entre a vida do cristão e a do mundo. O cristão atacava o mundo de perto; era uma luta corpo a corpo.
Mal entendido mais funesto não pode ocorrer na interpretação da obra de Lutero do que supor que ele tivesse proclamado, com o descobrimento do Evangelho da graça pura, uma dispensa da obediência ao mandamento de Jesus no mundo, ou que a descoberta da Reforma tivesse sido a canonização, a justificação do mundo mediante a graça que tudo perdoa. No conceito de Lutero, porém, a profissão secular do cristão tem sua justificação apenas no fato de nela o protesto contra o mundo atingir a sua máxima intensidade. A vocação secular do cristão recebe nova legitimidade a partir do Evangelho somente na medida em que é exercida no discipulado de Jesus. Não a justificação dos pecados, mas sim a do pecador é que levou Lutero a sair do convento. Lutero recebera a graça preciosa. Graça, por ser água sobre a terra sedenta, consolo na angústia, libertação da escravidão do caminho auto-escolhido, perdão de todos os pecados. Graça preciosa por não isentar ninguém da obra, antes chamando com insistência ainda maior ao discipulado. Mas justamente naquilo em que era preciosa é que ela era graça, e no que era graça, era preciosa. Era este o segredo do Evangelho da Reforma, o segredo da justificação do pecador.
No entanto, o vencedor da história da Reforma não é o reconhecimento de Lutero a respeito da graça pura e preciosa, mas sim o apurado instinto religioso do ser humano para descobrir onde é que a graça pode ser conseguida mais barata. Bastou um deslocamento muito ligeiro, quase imperceptível, da ênfase, para se consumar a obra mais perigosa e destrutiva. Lutero ensinava que, mesmo nos caminhos e obras mais piedosos, o ser humano não poderia subsistir perante Deus porque, no fundo, procura-se sempre a si próprio. Em face disso, ele próprio agarrara-se, na fé, à graça do livre e incondicional perdão de todos os pecados. Ao fazê-lo, Lutero sabia que essa graça lhe custara toda uma vida - e ainda lhe custava diariamente, pois a graça não o dispensara do discipulado, antes era agora que estava verdadeiramente comprometido com ele. Ao falar da graça, Lutero referia-se implicitamente à sua própria vida, vida que somente através da graça fora colocada na obediência plena a Cristo. Não podia falar da graça de outra maneira.
A graça tudo faz, dissera Lutero, e seus seguidores repetiam-lhe literalmente essa afirmação; com uma diferença, porém: muito em breve, deixaram de fora, deixaram de pensar e dizer aquilo que para Lutero sempre estava implícito em seu pensamento: o discipulado, aquilo que ele já não precisava dizer expressamente, pois falava sempre como pessoa a quem a graça conduzira ao mais árduo discipulado de Jesus. A doutrina de seus seguidores era, assim, inatacável do ponto de vista da doutrina de Lutero, e, no entanto, foi seu ensino que resultou no fim e na destruição do movimento reformatório como revelação da graça preciosa de Deus na terra. A justificação do pecador no mundo transformou-se em justificação do pecado e do mundo. A graça preciosa transformou-se em graça barata sem discipulado.
Quando Lutero afirmava que nossos esforços nada podem nem mesmo na vida mais piedosa e que, por isso, aos olhos de Deus, nada vale senão "a graça e o favor do perdão", dizia-o como alguém que até então e naquele mesmo momento se sentia novamente chamado ao discipulado de Jesus e a deixar tudo o que tinha. O reconhecimento da graça foi para ele a última ruptura radical com o pecado de sua vida, jamais, porém, a justificação do pecado. Na aceitação do perdão, esse reconhecimento foi a última renúncia radical à vida sob orientação própria, e, por isso, só então tornou-se um chamado sério ao discipulado. A graça era para Lutero um "resultado", mas um resultado divino, não humano.
Esse resultado, porém, foi transformado por seus sucessores em premissa básica para um cálculo. Nisso consiste todo o desastre. Se a graça é o "resultado" da vida cristã, dado pelo próprio Cristo, então esta vida não está dispensada, um único momento sequer, do discipulado. Se, porém, a graça constituir premissa básica de minha vida cristã, então tenho nela, antecipadamente, a justificação dos pecados que cometer durante minha vida no mundo. Posso agora pecar apostando nessa graça, pois o mundo está, em princípio, justificado por ela. Permaneço, por isso, em minha existência de cidadania mundana como até agora; tudo fica como antes, e posso viver na certeza de que a graça de Deus me encobre. O mundo inteiro tornou-se "cristão" à sombra dessa graça, mas o cristianismo mundanizou-se sob essa graça como nunca. Desapareceu o conflito entre a vida cristã e a vida profissional de cidadão mundano. A vida cristã consiste em viver no mundo e tal qual o mundo, sem dele me distinguir, seja no que for, nem devendo - por amor da graça - distinguir-me dele, embora, em determinadas oportunidades, eu saia do mun¬do para entrar no âmbito da Igreja, para aí me assegurar do perdão dos pecados. Estou dispensado do discipulado de Jesus - mediante a graça barata, que é inevitavelmente o mais acerbo inimigo do discipulado, e que necessariamente odeia e ultraja o verdadeiro discipulado. A graça como premissa inicial é graça da mais barata; a graça como resultado é a graça preciosa. É assustador reconhecer o quanto depende da forma como uma verdade evangélica é expressa e posta em prática. É a mesma men¬sagem da justificação tão-somente pela graça; no entanto, a má utilização dessa mensagem conduz à completa destruição de sua essência.
Quando o Dr. Fausto, após uma vida dedicada à pesquisa do conhecimento, diz: "Vejo que nada podemos saber", estamos diante dum resultado, algo completamente diferente do sentido que esta mesma frase teria se pronunciada por um estudante de primeiro semestre, para justificar sua preguiça (Kierkegaard). Como resultado, essa frase é verdadeira, mas, como ponto de partida, é uma ilusão. Isso significa que o conhecimento adquirido não pode ser separado da existência em que foi obtido. Somente quem se encontra no discipulado de Jesus, renunciando a tudo quanto possuía, pode dizer que é justificado tão-somente pela graça. Essa pessoa vê o próprio chamado ao discipulado como sendo graça, e a graça como sendo esse chamado. Engana-se, porém, a si próprio quem se julga por ela dispensado do discipulado.
Mas não teria o próprio Lutero se aproximado perigosamente desta total perversão da compreensão da graça? Como entender a frase de Lutero: Peccafortiter, sed fortius fide et gaude in Christo - "Peca com coragem, mas crê com coragem ainda maior e alegra-te em Cristo"? (Enders III, p. 208, 118ss.). Isso significaria: afinal, tu és pecador e nada podes fazer para te livrar do pecado; quer sejas monge, quer mundano, quer pretendas ser justo, quer sejas ímpio, não conseguirás escapar à armadilha do mundo; pecas. Peca, pois, com coragem justamente baseando-te na graça já acontecida, é claro. Estaríamos nós diante da proclamação aberta da graça barata, da carta branca ao pecado, da abolição do discipulado? Estaríamos diante do convite blasfemo de pecar à vontade, confiados na graça? Haverá afronta mais diabólica contra a graça do que pecar confiado na graça que Deus nos concedeu? Não terá razão o Catecismo católico ao reconhecer neste pecado o pecado contra o Espírito Santo?
Para compreender bem esta relação, tudo depende da distinção entre resultado e premissa. Se a frase de Lutero for encarada como premissa duma teologia da graça, então está proclamada a graça barata. Mas a verdadeira compreensão da frase de Lutero consiste em vermos nela não o princípio, mas exclusivamente o fim, o resultado, a pedra final, a palavra derradeira. Encarado como premissa, peccafortiter transforma-se em princípio ético; ao princípio peccafortiter deve corresponder o princípio graça. Isso é justificação do pecado, uma inversão da frase de Lutero. "Peca com coragem" - isso, para Lutero, somente podia ser o informe derradeiro, a consolação para a pessoa que, no caminho do discipulado, reconhece não conseguir libertar-se do pecado e que, amedrontada pelo pecado, já não consegue confiar na graça de Deus. Para ele, "peca com coragem" não é uma confirmação fundamental da sua vida em desobediência, mas Evangelho da graça de Deus, perante o qual somos, sempre e em todas as circunstâncias, pecadores, e o Evangelho que nos busca e justifica justamente na qualidade de pecadores. Confessa corajosamente teu pecado; não procures fugir dele, porém, "crê com coragem ainda maior". És pecador e, portanto, continua sendo-o. Não queiras ser qualquer outra coisa senão aquilo que és; sim, sê pecador todos os dias e, não obstante, sê corajoso. Mas a quem se poderá dizer isso senão à pessoa que, diariamente, repudia seu pecado com todas as forças de seu coração, que, diariamente, renuncia a tudo que lhe serve de empecilho no discipulado de Jesus e que, no entanto, permanece inconsolável por causa de sua infidelidade e pecado cotidianos? Quem poderá ouvir isso sem risco para sua fé, senão a pessoa que, por tal consolo, se sabe renovadamente chamada ao discipulado de Cristo? Assim a frase de Lutero, entendida como resultado, transforma-se na graça preciosa, a única que é verdadeiramente graça.
A graça como princípio, pecca fortiter como princípio, a graça barata é, no fim das contas, apenas uma nova lei que em nada ajuda e que não liberta. A graça como palavra viva, pecca fortiter como consolo na tribulação e chamado ao discipulado, a graça preciosa, só ela é graça pura, que realmente traz perdão e liberta o pecador.
Como corvos nos reunimos em torno do cadáver da graça barata e dela recebemos o veneno devido ao qual o discipulado de Jesus morreu em nosso meio. A doutrina da graça pura passou, de fato, por uma apoteose incomparável, a doutrina pura da graça tornou-se ela mesma Deus, tornou-se ela mesma graça. Em toda parte, as citações de Lutero, e, no entanto, a verdade convertida em ilusão! Se a Igreja possui, pelo menos, a doutrina da justificação, então é, sem dúvida, uma Igreja justificada, diz-se. Assim, a verdadeira herança luterana seria o maior barateamento possível da graça. Ser luterano seria deixar o discipulado de Jesus aos legalistas, aos reformados ou aos entusiastas, tudo por amor da graça; seria justificar o mundo e transformar em herege o cristão que enveredasse pelo caminho do discipulado. Cristianizara-se, luteranizara-se um povo inteiro, porém, às expensas do discipulado, a um preço demasiadamente barato. Triunfara a graça barata.
Mas saberemos também que esta graça barata foi extremamente cruel para nós? O preço que hoje temos que pagar com o colapso das igrejas organizadas será qualquer outra coisa senão uma conseqüência necessária do barateamento da graça? Tornaram-se baratos a mensagem e os sacramentos; batizou-se, confirmou-se, absolveu-se todo um povo sem perguntas nem condições; por humanitarismo, deu-se o santuário aos zombadores e incrédulos, dispensaram-se rios sem fim de graça, mas o chamado ao discipulado rigoroso de Cristo ouvia-se cada vez mais raramente. Onde ficaram as percepções da Igreja primitiva que, na catequese do batismo, tinha tanto cuidado em vigiar a fronteira entre a Igreja e o mundo, em vigiar a graça preciosa? Onde ficaram os avisos de Lutero contra a proclamação de um evangelho que garantia segurança aos seres humanos em sua vida sem Deus? Quando foi o mundo mais cruelmente e mais desapiedadamente cristianizado do que aqui? Que são os 3 mil saxões assassinados segundo o corpo por Carlos Magno, comparados com os milhões de almas mortas na atualidade? Acontece que os pecados dos pais estão sendo castigados nos filhos até a terceira e quarta geração. A graça barata foi muito cruel para nossa Igreja Evangélica.
A graça barata decerto foi também cruel pessoalmente para a maioria de nós. Não nos abriu, antes fechou o caminho para Cristo. Não nos chamou ao discipulado, antes nos endureceu na desobediência. Ou não foi crueldade quando tendo, quem sabe, escutado o chamado ao discipulado de Jesus como o chamado da graça de Cristo, tendo mesmo arriscado os primeiros passos do discipulado na disciplina da obediência ao mandamento, fomos assaltados pela mensagem da graça barata? Pudemos nós interpretar essa mensagem de outra forma senão que o que ela pretendia era deter-nos no caminho, chamando a um bom senso tão mundano, sufocando em nós a alegria do discipulado ao sugerir que tudo não passava de um caminho escolhido por nós mesmos, um dispêndio de energias, esforços e disciplina desnecessário e, até mesmo, muito perigoso, pois na graça tudo já estaria pronto e consumado? O pavio fumegante foi desapiedadamente extinto. Foi cruel falar assim a um ser humano porque ele, desorientado por uma oferta tão barata, iria necessariamente abandonar seu caminho - o caminho para o qual Cristo o chamara - para, agora, agarrar-se à graça barata que o privou, para sempre, do conhecimento da graça preciosa. Era inevitável que o ser humano enganado e fraco se sentisse subitamente forte na posse da graça barata, quando, na realidade, havia perdido a força para a obediência, para o discipulado. A mensagem da graça barata tem arruinado mais cristãos do que qualquer mandamento de obras.
Em tudo que segue, queremos falar em nome de todas as pessoas que estão atribuladas e para as quais a palavra da graça se tornou assustadoramente vazia. Por amor da verdade, essa palavra tem que ser pronunciada em nome daqueles entre nós que reconhecem que, devido à graça barata, perderam o discipulado de Cristo e, junto com o discipulado de Cristo, a compreensão da graça preciosa. Simplesmente por não querermos negar que já não estamos no verdadeiro discipulado de Cristo, que somos, é certo, membros de uma Igreja ortodoxamente crente na doutrina da graça pura, mas não membros de uma Igreja do discipulado, é preciso tentar compreender de novo a graça e o discipulado em sua verdadeira relação mútua. Já não ousamos mais fugir ao problema. Cada vez se torna mais evidente que o problema da Igreja se resume nisso: como viver hoje uma vida cristã?
Felizes aqueles que se encontram já no fim do caminho que pretendemos percorrer e que, com espanto, compreendem o que de fato parece incompreensível: que a graça é preciosa justamente por ser graça pura, por ser a graça de Deus em Jesus Cristo! Felizes aqueles que, no singelo discipulado de Jesus, se encontram possuídos por essa graça, podendo, humildes em espírito, louvar a graça de Cristo que tudo opera! Felizes aqueles que, no conhecimento desta graça, podem viver no mundo sem para ele se perderem, e para os quais, no discipulado de Cristo, a pátria celestial é uma certeza tal que estão verdadeiramente livres para a vida neste mundo! Felizes aqueles para os quais o discipulado de Jesus Cristo nada mais é senão a vida baseada na graça, e para os quais a graça nada mais é senão o discipulado! Felizes aqueles que, neste sentido, se tornaram cristãos para os quais a mensagem da graça foi misericórdia!